A família de Zé Pedro trabalha preparando corpos para velórios. Zé Pedro coleciona itens estranhos em caixas, especialmente olhos de mortos. Quando um novo corpo chega, Zé Pedro se apaixona pelos olhos da menina e os rouba, acordando-a. Ele oferece seus próprios olhos para ela, ganhando seu amor.
Boas práticas de programação com Object Calisthenics
A coleção
1. A COLEÇÃO
- conto –
2005
CAMILA APPEL
* todos os direitos reservados. texto registrado no Escritório
de Direitos Autorais da Fundação Biblioteca Nacional*
1
2. Zé Pedro, um garoto comum na primeira aparência. É parte
integrante de uma família não convencional. Seguindo
tradição herdada pelo bisavô, enfeitam mortos e preparam
velórios. Pai se encarrega do trabalho pesado. Molda a
madeira do caixão à preferência da família do morto,
transporta corpos e martela pregos. Mãe é maquiadora dos
defuntos, lixa unhas, corta cabelo, faz barba, até
depilação facial enfrenta, se necessário. Tudo para deixar
corpo mais apresentável e proporcionar à família e aos
amigos uma última visão, a última fotografia do ser que
deixou esse mundo para melhor. A avó materna é uma graça de
pessoa. Diverte-se em ver a família trabalhando, parentes
do defunto chegando, já que muitas vezes velório é feito lá
mesmo, onde moram. Ela é respeitada como um padre, dando a
benção aos que passam. Tem sua mão beijada, fala e acalma
em nome de Deus. Adora ler histórias infantis. Lia e relia
historinhas para o neto quando pequeno, se divertia com as
de terror, que eram as que mais gostava. Com neto já
grande, contenta-se em lê-las para os defuntos, que parecem
rir de sua dramatização fantástica. Ainda é uma grande
atriz.
A família de Zé Pedro é assim, não menos estranha do
que ele. Trabalham juntos e ainda por cima dentro da
própria casa. Usam escritório que não pode ser considerado
usual. Sala, com cara de despensa, aconchega escrivaninha
com vista para cama, de ferro. À mesa, senta-se pai para
fazer contas da casa. Na cama de ferro, o morto. Às vezes,
pai conversa com defunto, reclama da vida e retifica que
feliz mesmo é ele que jaz deitado, por estar imóvel e não
ser esperado para nada, de nada. Armário da direita é como
qualquer armário de cabeleireiro. Tem cera, esmalte, lixa,
artefatos de corte e costura. Maquiagem fica na gaveta,
lacrada. De grande valor para a mãe de Zé Pedro, que se
nega a colocar maquiagem vagabunda nos defuntos.
2
3. Pai de Zé Pedro é profissional respeitado, procurado
por todos nos momentos de maior tristeza, ou de alivio. Já
se acostumou com os choros, resmungos e zumbidos dos que
sofrem. Choro é muito sinfônico, uma melodia inigualável -
diz à mulher antes de dormir. Quando ele tem insônia, ela
imita choros contidos que acalmam a ansiedade do marido e
fazem-no ressonar como um bebê. Ossos da profissão.
Zé Pedro não tem amigos, ou namorada. Filho único, tem
privilégio de um quarto só para si. Não usa muito de
decoração, se contenta com cama, criado-mudo, livros no
chão e prateleiras cheias de caixas. E é aí que se dá a
estranheza de Zé Pedro, que não se vê na primeira
aparência. Zé Pedro é grande colecionador. Guarda suas
coleções em caixas. As caixas têm nomes, sendo reconhecidas
pela etiqueta que simboliza o que tem dentro. Não revelam a
estranhos seu conteúdo, apenas dão uma dica que só Zé Pedro
entende. A caixa lua guarda a coleção de bolinhas de gude,
a caixa Ícaro tem a coleção de selos, a caixa vira-lata tem
a coleção de pedras da rua, a quarto poder tem um amontoado
de notícias impactantes que marcaram a história do mundo. A
caixa dedend guarda a coleção de unhas cortadas e sem vida,
e por aí vai. O que ninguém sabe, além dos cupins que vivem
nas entrelinhas das caixas, é que a prateleira tem um fundo
falso. E que atrás desse fundo, Zé Pedro guarda as coleções
especiais, as mais importantes. Quando perde interesse em
alguma coleção, Zé Pedro a enterra no jardim. Não quer que
ninguém mais a tenha.
Seu amor por caixas e coleções só não é maior do que
sua fixação por olhos. Essas duas bolinhas que temos ao
redor do nariz, debaixo da testa e em cima da boca. Os
olhos. Quando conversa com alguém, o que é raro, não
consegue tirar a atenção dos olhos da pessoa. O que a boca
fala não é importante, só o que os olhos dizem. E dizem
muita coisa. Começa anotando na mente todas as
3
4. características físicas dos olhos, seu formato, cores
sutis, degradê e tamanho dos cílios. Depois, passa a
registrar movimentos, modo como bola redonda mexe dentro da
cavidade, como pupila dilata e contrai, como cílios fecham
e abrem. Maravilha quando um cisco entra no olho da pessoa.
É um torce o olho de cá para lá. Show de alegria para ver
olho vermelho, cansado de ser amassado. Branco do olho
também é especial. Alguns mais, outros menos, e muito
delicados. Que vontade dá de enfiar uma agulhinha, bem
fininha, calmamente no olho da pessoa, colocar um canudinho
e assoprar. Que gosto será que têm os olhos? Dá para
morder? Apertar com a mão? Beijar?
A frase Você sabia que tem um olho muito bonito?
significa muito mais saindo de sua boca do que da maioria
das pessoas. Para ele fazer tal afirmação, é preciso muita
análise e sujeição. Escutar alguém falando horas e horas
sobre um assunto desinteressante. Vontade tem de tocar os
olhos, mergulhar dentro de cada um, perder-se nas linhas,
nas pintas, na profundidade. É tão bom ouvinte que família
não cansa de tentar convencê-lo a seguir carreira de padre.
Para ficar no confessionário, escutando. Já cogitou idéia.
Zé Pedro padre. Poderia olhar por horas e horas os olhos
das pessoas sem ter que prestar atenção no que dizem. Mas
não. Encontrou algo melhor. Zé Pedro decidiu seguir
tradição da família e também começou a trabalhar em casa.
Agora, ele é colecionador. Atrás da prateleira, a coleção
mais importante, a mais amada.
Tudo começo numa noite em que Zé Pedro não conseguia
dormir e resolveu vagar pela casa. Ele desceu escadas que
levam ao escritório e notou o morto, coberto por lençol na
cama. Tinha olhos fechados e expressão serena. Sentiu
curiosidade em abrir pálpebras e ver olhos que o aguarda.
Foi o que fez. O que viu o alucinou. Sem vida, eles ficam
ainda mais bonitos, porque podem ser simplesmente olhos.
4
5. Foi aí que roubou, pela primeira vez, um par de olhos. Com
a tesoura da mãe de cortar cabelos, arrancou-os colocando
bolinhas de gude para encher o vazio da cavidade. Nem
sangrou. Zé Pedro passou a colecionar olhos. Nada mais lhe
interessava. Quando alguém morria, enchia-se de alegria e
expectativa. Ninguém percebia o furto, que louco ia abrir
as pálpebras de um defunto?
Assim, atrás do fundo falso da prateleira, Zé Pedro
tem a coleção mais importante: a de olhos. À noite, brinca
com eles até pegar no sono. Mistura todos e fica horas
procurando juntar os pares. A coleção de olhos foi
crescendo e Zé Pedro achando um sentido na vida. Tudo
estava caminhando bem na família. Pai contando, avó
cantando, mãe pintando e Zé Pedro colecionando. Até que o
dia em que ela chegou.
Dim-doim. Toca campainha anunciando a chegada do novo
defunto. Zé Pedro se anima. Depois de todos irem dormir,
menino desce ao escritório e encontra uma defunta incomum.
Ao vê-la linda, toda vestida de boneca, maquiada e imóvel,
Zé Pedro apaixona-se. E a vontade de ter aqueles olhos é
ainda maior. Abre uma das pálpebras e exclama: Azul! Olha
para cima, atesta que ninguém está por perto e arranca os
dois olhos da menina.
No meio do assalto, susto. A paixão de Zé Pedro acorda
a menina de supetão. Chorando, reclamando da escuridão, e
perguntando onde está. Zé Pedro grita pelo pai, que chama
ambulância, que chama médico, que chama padre, que chama
Deus. Não há solução para Marina. Seus olhos não podem ser
devolvidos pois não cabem mais em suas cavidades. Zé Pedro
tem uma idéia e age por impulso. Arranca seus próprios
olhos e os oferece à menina Marina. Que aceita. Paixão
avassaladora brota no casal. Zé Pedro acha que oferece o
mais precioso dos presentes: Marina para sempre o amará,
enxergando-o com os olhos dele.
5